15M e 26M: primeiras análises

Midiativismo e midiatização: o caso dos celulares nos protestos

Richard Romancini (texto e fotos)


Há muito a ser dito e analisado sobre as manifestações de 15 e 26 de maio de 2019. Mas, uma abordagem interessada na relação entre comunicação e protesto, certamente poderá notar a importância que o uso dos telefones celulares assume para os participantes — como dispositivo de produção midiática. É claro, algumas pessoas também utilizam a função tradicional do telefone, mas um número expressivo produz, publica e compartilha textos, áudios, fotos e vídeos. Como isso pode ser pensado? Como um fenômeno de midiativismo?

Alice Mattoni (2013) argumenta que o midiativismo pode ser entendido desde perspectiva mais ampla até as mais restritas, no seguinte gradiente: o ativismo com o uso da mídia, o ativismo na mídia e o ativismo a respeito da mídia.

Na primeira acepção (ativismo com o uso da mídia), os ativistas utilizam tecnologias para “organizar, promover, e relatar as atividades do movimento social. Por exemplo, os ativistas podem usar uma lista de e-mails para coordenar a organização de uma greve, criar um site para patrocinar um protesto e usar filmadoras digitais para divulgar uma manifestação” (p. 1). O número de possibilidades dessa forma de midiativismo ampliou-se com a disseminação de tecnologias digitais e a adoção generalizada da internet, já que as novas produções podem se combinar com as mais tradicionais (boletins e jornais impressos, por exemplo). Isso tem levado a uma provável produção maior de mídia pelos ativistas.

No segundo entendimento (ativismo na mídia), já menos amplo, há o desenvolvimento de ações no próprio “ambiente da mídia, assumido como o espaço no qual são subvertidos símbolos e ícones que representam os tópicos contenciosos com os quais os ativistas se envolvem” (p. 1). A autora exemplifica essa situação com a culture jamming, voltada com frequência à crítica de códigos culturais dominantes. Nesse caso os ativistas podem fazer paródias críticas de anúncios publicitários, caso da fundação canadense Adbusters Media Foundation (cuja revista impulsionou o Occupy Wall Street), bem como expor fragilidades e contradições da mídia tradicional, com a criação de eventos falsos, que atraem cobertura noticiosa.

Para Mattoni, o próprio hackivismo pode ser classificado no âmbito do ativismo na mídia, quando envolve a realização de “eventos de protesto e campanhas no ambiente on-line, desenvolvendo vários tipos de ações, como manifestações virtuais ou a construção de sites falsos” (p. 1).

Por fim, na categoria mais delimitada ainda (ativismo a respeito da mídia), a própria mídia e a comunicação são colocadas no campo confrontacional. Para alguns autores, essa forma de midiativismo é um movimento social em si mesmo. Outros, porém, acreditam que é uma ação que conecta diferentes movimentos sociais. Conforme Mattoni (2013, p. 1): “Ativistas envolvidos em políticas contenciosas relacionadas à mídia e à comunicação frequentemente alteram o ambiente da mídia no nível material, especialmente no ciberespaço: além de se engajar em performances de protesto, eles também fornecem conteúdo, software e infraestruturas”. A criação da Wikipédia e a ação de ativistas que constroem infraestruturas de comunicação e informação são exemplos.

A conclusão da autora é o que midiativismo tem se modificado e se ampliado nos últimos tempos, em particular no que diz respeito à produção e veiculação de conteúdos. No primeiro caso, o ponto é a disseminação de dispositivos (como os celulares) e, no outro, a internet e o uso de plataformas que favorecem a conexão entre as pessoas, como as redes sociais.

Dito isso, podemos retomar a questão: o panorama mostrado nas fotos abaixo é uma forma de midiativismo?


Numa leitura mais imediata, talvez seja válido entender que a primeira dimensão do midiativismo está ligada à generalização da prática de feitura de registros com os telefones celulares. No entanto, muitos dos participantes que tiram fotos ou fazem vídeos são mais apoiadores (ou curiosos) do que ativistas, ou seja, suas produções provavelmente (ainda que possam ser propagadas por sites de redes sociais) destinam-se a um público bem mais restrito do que as mídias alternativas dos próprios movimentos sociais e ativistas.

Percorrendo as manifestações, ainda se nota a presença de ativistas ou profissionais contratados pelos grupos organizados para fazer registros com mais qualidade (embora alguns também utilizem celulares modernos, por meio do qual podem transmitir o protesto pela internet). E não se pode descartar que, entre os que produzem registros, existam agentes policiais. Aqui é possível fazer uma generalização: os registros midiáticos de protestos e movimentos sociais situam-se num continuum que tem como pontos antagônicos a celebração/mobilização e a repressão. A Comuna de Paris exemplifica o curioso caso em que ambas as dimensões precocemente se encontraram, já que “os felizes rebeldes foram identificados [pela polícia] através de suas fotografias nas barricadas” (Tacca, 2005, p. 16).

Os movimentos sociais foram profundamente afetados pelas mídias massivas, particularmente quanto o jornalismo se despartidariza e eles “tiveram que se envolver em um processo de conquista de apoio pela persuasão. Nesse sentido, as relações públicas, o manejo da mídia e a comunicação política tornaram-se cada vez mais importantes” (Rucht, 2013, p. 254). Entretanto, o que há de novo hoje na produção midiática dos que participam de protestos — entre as práticas de mobilização (em que está o midiativismo) e as de repressão — é uma questão empírica e de pesquisa interessante

Talvez um conceito útil para pensar na questão seja o de midiatização, que remete aos tipos de efeitos e influências que a mídia exerce numa série de fenômenos (Hjarvard, 2012). As pervasivas mídias digitais adicionam uma camada de complexidade à questão. De qualquer modo, quais são exatamente esses efeitos e como se poderia construir uma tipologia de usos da mídia pelos diferentes participantes de manifestações? Como tais usos das novas mídias interagem com as práticas tradicionais, inclusive o relacionamento com a grande mídia?

A busca por respostas para questões desse tipo são temas para os pesquisadores dos movimentos sociais contemporâneos, pois, como nota Rucht (2013, p. 263), “quando falamos sobre os efeitos da mobilização com base na internet, devemos olhar para os usos reais em vez dos potenciais”.

Referências

Hjarvard, S. (2012). Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. MATRIZes, 5(2), 53-91. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v5i2p53-91

Mattoni, A. (2013). Media activism (pp. 1-2). In D. A. Snow, D. Della Porta, B. Klandermans, & D. McAdam (Eds.). The Wiley Blackwell Encyclopedia of Socia and Political Movements. Chichester; Malden: Wiley-Blackwell.

Rucht, D. (2013). Protest movements and their media usages (pp. 249-268). In B. Cammaerts, A. Mattoni, & P. McCurdy (Eds.). (2013). Mediation and protest movements. Bristol; Chicago: Intellect.

Tacca, F. de. (2005). Imagem fotográfica: aparelho, representação e significação. Psicologia & Sociedade, 17(3), 9-17. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822005000300002