A Crise na Educação, Ontem e Hoje: Entrevista com Hannah Arendt sobre Educação, Política e Tecnologia

por Luiz Fernando Fontes Teixeira

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Há algumas semanas atrás, o professor Renato Janine Ribeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, foi nomeado Ministro da Educação. Um furor irrefreável invadiu o ambiente universitário, levantando expectativas e renovando esperanças de que, agora, com um filósofo especializado em Ética e Filosofia Política, a educação brasileira talvez tivesse uma chance de “tirar o atraso” de cinco século de estagnações e retrocessos. Por outro lado, muitos não somente desconfiaram como também contestaram a nomeação do professor. Acusavam-no de toda sorte de tendenciosidades redundantes de uma carreira quase exclusivamente pública, de comprometimentos partidários indevidos, além de uma atenção fortemente voltada para o ensino superior, o que poderia significar um abandono do ensino básico por parte do Ministério. Entre certezas e incertezas, esperanças e repetições do mesmo, o fato mais evidente que se pôde observar com a divulgação da notícia foi o de que, definitivamente, a educação brasileira está em crise – uma crise longeva, que demanda uma resposta mais do que imediata.

Com o objetivo de elucidar quais são os maiores desafios e adversidades, bem como aproveitar experiências que possam porventura ter dado certo, rechaçando aquelas que deram errado, diversas metodologias de pesquisa são aplicadas diariamente por “especialistas” em educação. Refiro-me especificamente aos colegas acadêmicos do professor Renato Janine Ribeiro, que compõem o corpo docente da Universidade de São Paulo e de outras universidades (e que dedicam seu tempo de trabalho às possíveis melhorias dos ecossistemas educacionais brasileiros). Com efeito, muito há de se pesquisar e a necessidade de ouvir os educadores que fazem o dia-a-dia da sala de aula “acontecer” se mostra mais do que urgente. Por esse motivo, não apenas se dispende considerável tempo investigando processos e projetos, teorias e ideias, como também entrevistando os profissionais que, de uma maneira ou de outra, estão implicados nas tarefas educacionais cotidianas. É preciso ouvir os professores e gestores! Isso ninguém nega.

Contudo, talvez ainda não tenhamos esgotado (provavelmente não chegamos nem perto disso) o discurso de alguns pensadores que contribuíram para a história do desenvolvimento das ideias educacionais e que são ainda extremamente contemporâneos. Tendo isso em vista, formulei uma proposta um tanto quanto “trapaceira”: entrevistar uma autora que, em suas obras, prestou inestimáveis contribuições para tópicos pertinentes às crises de ontem e de hoje, especificamente no que tange às relações entre educação, política e tecnologia. A autora? Hannah Arendt – uma das maiores filósofas do século vinte. Só havia um único problema: Hannah Arendt faleceu no dia 4 de dezembro de 1975. Seria um tanto quanto complicado marcar uma entrevista nesse contexto. Assim, tive uma ideia: utilizar os textos de Hannah Arendt, permitindo que eles falem por ela e respondam às inquirições que, ainda hoje, são incômodas e impertinentes. Talvez retornando à autora e refletindo um pouco sobre o que ela nos deixou de herança, tenhamos a oportunidade de nos dirigirmos para nossos educadores atuais com uma perspectiva renovada.

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ALGUMAS NOTAS SOBRE HANNAH ARENDT

Hannah Arendt (1906-1975) foi uma das maiores pensadoras do século XX. Alemã de origem judaica, ingressou na Philips-Universität Marburg em 1924, período no qual a universidade congregava em seu corpo docente grandes nomes da filosofia continental, como Martin Heidegger (1889-1976), Rudolf Bultmann (1884-1976) e Nicolai Hartmann (1882-1950). Esse último era um dos principais receptores da chamada “Escola Neokantiana de Marburg”, que havia se desenvolvido a partir das obras de pensadores como Hermann Cohen (1842-1918), Paul Natorp (1854-1924) e Ernst Cassirer (1874-1945). Sob tais influências, Arendt deu início aos seus estudos, dedicando-se aos temas mais emergentes de sua época e de seu ambiente acadêmico.

Pouco tempo após ter iniciado seus estudos, transferiu-se para a Albert-Lüdwigs Universität Freiburg im Breisgau para acompanhar as aulas de Edmund Husserl (1859-1938), seguindo o conselho de Heidegger – que mais tarde (em 1929) ocuparia a cátedra do velho mestre nessa mesma universidade. Em 1928, defendeu sua tese de doutorado em torno ao Conceito de Amor em Santo Agostinho, orientada por Karl Jaspers (1883-1969). Ademais, mantinha ainda um diálogo ativo com muitos jovens talentos que se tornariam grandes nomes da filosofia contemporânea, como Hans Jonas (1903-1993), Herbert Marcuse (1898-1979) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002).

A partir de 1933, com a ascensão de Adolf Hitler (1889-1945) e o início da perseguição antissemita, que se fortificava em toda Europa, Arendt assume uma postura política ativa de resistência ao Terceiro Reino. Ela foge para a França, após passar pela República Checa e pela Suíça, logrando imigrar para os Estados Unidos da América em 1941, onde permaneceu lecionando até o dia de sua morte, aos 4 de dezembro de 1975. Entre suas obras de maior impacto, encontram-se A Origem do Totalitarismo (1951) e A Condição Humana (1958), além de dezenas de artigos e conferências, posteriormente compilados em coletâneas e edições críticas.

A ENTREVISTA

 

Dra. Hannah Arendt, para que possamos começar nossa conversa, seria possível que você nos oferecesse algumas de suas impressões gerais sobre o que é isto, a Educação?

Hannah Arendt – A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo, e não se aplica às formas de vida animais; corresponde a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um lado, e com a vida, de outro. A criança partilha o estado de vir a ser com todas as coisas vivas; com respeito à vida e seu desenvolvimento, a criança é um ser humano em processo de formação, do mesmo modo que um gatinho é um gato em processo de formação. Mas a criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela, que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida. Se a criança não fosse um recém-chegado nesse mundo humano, porém simplesmente uma criatura viva ainda não concluída, a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento na prática do viver que todos os animais assumem em relação a seus filhos.

Os pais humanos, contudo, não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração.

E como se configura essa responsabilidade, especificamente na educação?

Hannah Arendt – Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.

Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerta deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: – Isso é o nosso mundo.

O conceito de autoridade é bem complicado. Ele se confunde com autoritarismo, violência, agressividade e todo tipo de restrições reacionárias e ditatoriais. Você pode nos esclarecer qual o sentido da autoridade da qual fala?

Hannah Arendt – Pois bem: sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à autoridade. Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema, é óbvio que, na vida pública e política, a autoridade ou não representa mais nada – pois a violência e o terror exercido pelos países totalitários evidentemente nada têm a ver com autoridade –, ou, no máximo, desempenha um papel altamente contestado. Isso, contudo, simplesmente significa, em essência, que as pessoas não querem mais exigir ou confiar a ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais, pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo.

As crianças não podem derrubar a autoridade educacional, como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta – embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido à prova na prática educacional moderna. A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.

O como é possível exercer autoridade e se responsabilizar pelo curso das coisas no mundo sem permitir que isso se torne uma violência contra as crianças?

Hannah Arendt – Visto que a autoridade exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é coloca em suspensa. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos. (A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado.)

Historicamente, podemos dizer que a perda da autoridade é meramente a fase final, embora decisiva, de um processo que durante séculos solapou basicamente a religião e a tradição.

Com a perda da autoridade, contudo, a dúvida geral da época moderna invadiu também o domínio político, no qual as coisas assumem não apenas uma expressão mais radical como se tornam investidas de uma realidade peculiar ao domínio político. O que fora talvez até hoje de significação espiritual apenas para uns poucos se tornou preocupação geral. Somente agora, por assim dizer após o fato, a perda da tradição e da religião se tornaram acontecimentos políticos de primeira ordem.

Então, podemos considerar que autoridade significa transmissão da tradição? Qual a relevância disso?

Hannah Arendt – Estamos ameaçados de esquecimento, e um tal olvido – pondo inteiramente de parte os conteúdos que se poderiam perder – significaria que, humanamente falando, nos teríamos privado de uma dimensão, a dimensão de profundidade na existência humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação.

Também podemos considerar que, ao passo que a educação demanda um discurso de autoridade, a política demanda um discurso de igualdade? Os dois seriam, portanto, incompatíveis?

Hannah Arendt – O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, a partir dos tempos antigos, mostra o quanto parece natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos. No que toca à política, isso implica obviamente um grave equívoco: ao invés de juntar-se aos seus iguais, assumindo o esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso, há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse. Por esse motivo na Europa, a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feito tirânico que, ao chegarem ao poder, subtraem as crianças a seus pais e simplesmente as doutrinam.

Citando um exemplo prático: o povo brasileiro se encontra, hoje, em profundo desalento e quase totalmente desacreditado, tanto na esfera da educação quanto da política e de seus representantes. Um dos maiores ícones da educação em nosso país, o pedagogo Paulo Freire (1921-1997), argumentou que “educar é um ato político”. Você considera que uma educação enquanto “ato político” pode favorecer o panorama atual do país, contribuindo para que sejam formados novos cidadãos, com senso ético e crítico, para uma nova política?

Hannah Arendt – A educação não pode desempenhar nenhum papel na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade política. Como não se pode educar adultos, a palavra “educação” soa mal em política; o que há é um simulacro da educação, enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força. Quem desejar seriamente criar uma nova ordem política mediante a educação, isto é, nem através de força e coação, nem através da persuasão, se verá obrigado à pavorosa conclusão platônica: o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser fundado. Mas mesmo às crianças que se quer educar para que sejam cidadãos de um amanhã utópico é negado, de fato, seu próprio papel futuro no organismo político, pois, do ponto de vista dos mais novos, o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho do que eles mesmos. Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.

E como se dá um processo educacional que permite aos recém-chegados uma introdução no mundo?

Hannah Arendt – Normalmente a criança é introduzida no mundo pela primeira vez através da escola. No entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. Aqui, o comparecimento não é exigido pela família, e sim pelo Estado, isto é, o mundo público, e assim, em relação à criança, a escola representa em certo sentido o mundo, embora não seja ainda o mundo de fato. Nessa etapa da educação, sem dúvida, os adultos assumem mais uma vez uma responsabilidade pela criança, só que, agora, essa não é tanto a responsabilidade pelo bem-estar vital de uma coisa em crescimento como por aquilo que geralmente denominamos de livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais. Isto, do ponto de vista geral e essencial, é a singularidade que distingue cada ser humano de todos os demais, a qualidade em virtude da qual ele não é apenas um forasteiro no mundo, mas alguma coisa que jamais esteve aí antes.

Em seus comentários, aparece algo como uma “crise da tradição na educação”, que impede esse processo de introdução das crianças no mundo por meio da educação. É possível considerar que a chamada “Era da Técnica” alavancou essa crise? O que o advento da tecnologia influi no curso das coisas do mundo, nesse sentido?

Hannah Arendt – Há já algum tempo este tipo de sentimento vem-se tornando comum; e mostra que, em toda parte, os homens não tardam a adaptar-se às descobertas da ciência e aos feitos da técnica, mas, ao contrário, estão décadas à sua frente. Neste caso, como em outros, a ciência apenas realizou e afirmou aquilo que os homens haviam antecipado em sonhos – sonhos que não eram loucos nem ociosos.

Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar “artificial” a própria vida, por cortar o último laço que faz o próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, “sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores” e “alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função”; e talvez esse desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.

Em que medida essa visão científico-tecnológica do mundo isso impacta a educação?

Hannah Arendt – O problema tem a ver com o fato de que as “verdades” da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio.

Ainda não sabemos se esta situação é definitiva; mas pode vir a suceder que nós, criaturas humanas que nos pusemos a agir como habitantes do universo, jamais cheguemos a compreender, isto é, a pensar e a falar sobre aquilo que, no entanto, somos capazes de fazer. Neste caso, seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós. Se realmente for comprovado esse divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja.

Muitas pessoas falam, hoje em dia, sobre o uso da tecnologia na educação, não como fim, mas como meio. Argumenta-se com bastante frequência que se trata de utilizar a tecnologia como meio para mediar a educação e elevar a qualidade de ensino. Qual seu ponto de vista sobre esse assunto?

Hannah Arendt – A crescente ausência de sentido do mundo moderno é talvez prenunciada com maior clareza que em nenhum outro lugar nessa identificação de sentido e fim. O sentido, que não pode ser nunca o desígnio da ação e que no entanto surgirá inevitavelmente das realizações humanas após a própria ação ter chegado a um fim, era agora perseguido com o mesmo mecanismo de intenções e meios organizados empregado para atingir os desígnios particulares direitos de ação concreta: o resultado foi como se o próprio sentido se houvesse separado do mundo dos homens e a eles somente fosse deixada uma interminável cadeia de objetivos em cujo progresso a plenitude de sentido de todas as realizações passadas constantemente se cancelasse por metas e intenções futuras. Era como se os homens fossem subitamente cegados para distinções fundamentais tais como entre sentido e fim entre o geral e o particular, ou gramaticalmente falando, entre “por causa de…” (for the sake of…) e “a fim de…” (in order to…) (como se o carpinteiro, por exemplo, esquecesse que somente seus atos particulares ao fazer uma mesa são realizados “a fim de”, mas que sua vida total como carpinteiro é governada por algo inteiramente diverso, ou seja, uma noção abrangente “por causa da” qual, antes de mais nada, se tornou um carpinteiro). E, no momento em que tais distinções são esquecidas e os sentidos são degradados em fins, segue-se que os próprios fins não mais são compreendidos, de modo que, finalmente, todos os fins são degradados e se tornam meios.

Dra. Hannah Arendt, muito obrigado pela entrevista. Decerto ainda passaremos muito tempo refletindo sobre o sentido de algumas de suas palavras. Para finalizar, você poderia nos proporcionar, de maneira sucinta, um ponto de vista por meio do qual possamos traçar um compêndio unitário das tarefas da educação, frente aos embargos de ontem e as adversidades de hoje?

 O que nos diz respeito, e que não podemos portanto delegar à ciência específica da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termos ainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.

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