Aos mestres, com carinho… mas nem tanto

por Luiz Fernando Fontes Teixeira

15 de outubro é a data em que se comemora, no Brasil, o dia do professor. Uma festividade que remonta à criação do ensino elementar, ainda no século XIX, sob decreto do Imperador Pedro I. Todavia, tornou-se uma celebração especificamente dedicada ao professor somente em 1947, a partir da iniciativa de alguns docentes do antigo Ginásio Caetano de Campos, em São Paulo.

Embora passe longe de ser a mais exaltada data comemorativa do país, trata-se de um dia já sempre presente na formação dos cidadãos brasileiros. Ele compõe nossa memória desde os primeiros dias do período escolar. Ainda crianças, somos advertidos por nossos pais ou responsáveis que o 15 de outubro marca o “dia do professor” e devemos prestar homenagem e tributo aos mestres, quando não presenteá-los com regalos e cortesias.

67 anos se passaram desde a primeira comemoração oficial. Talvez caiba, no percurso rumo ao septuagésimo aniversário desta data, uma reflexão sobre o papel fundamental que desempenha o professor em nossa civilização. Ao menos a isto me proporei nas linhas que se seguem.

Dentre as várias possibilidades de se abordar a figura do professor na sociedade, interessa-me particularmente uma, apresentada por Sigmund Freud no início do século XX.

Freud não se ocupou, ao longo de sua obra, de pensar enfaticamente a educação. Suas breves anotações acerca do tema advieram muito provavelmente das discussões que travou com o pedagogo suíço Oskar Pfister, que se interessou pela psicanálise após ter sido apresentado a Freud por Carl Gustav Jung. Chegará o dia no qual terei tempo e disposição para ler devotadamente as cartas entre Freud e Pfister e escrever algum tipo de comentário, mas este ainda não é o momento.

A despeito de não colocar a educação como tópico central de seus trabalhos mais relevantes, Freud se dedicou por alguns breves momentos a meditar sobre o assunto. Uma de suas mais expressivas contribuições se encontra em um artigo de 1914, intitulado Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. Ali, ressalta-se sobretudo sua perspectiva em torno ao professor. Quem ainda não teve a oportunidade de ler este breve texto, mas se interessa pelo tema, certamente deve separar alguns minutos para conhecê-lo.

Em primeiro lugar é importante destacar que o artigo foi preparação em ocasião do 50º aniversário da escola que Freud frequentou dos 9 aos 17 anos. Por este motivo, o escrito de Freud possui um caráter muito mais livre, como um relato ou tributo, do que propriamente científico.

Após expor concisamente seu percurso até sua formação superior em Medicina, Freud salienta que, como psicanalista, possui um interesse muito maior pelos processos emocionais da vital mental inconsciente do que pela atividade intelectual consciente. Por este motivo, confessa não saber dizer o que o influenciou mais no período escolar, se a preocupação pela ciência ou a personalidade dos mestres. É então que Freud oferece uma das mais significativas reflexões sobre o professor, em um parágrafo que gostaria de citar por completo:

Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas; imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam; estudávamos seus caráteres e sobre estes formávamos ou deformámos os nossos. Eles provocavam nossa mais enérgica oposição e forçavam-nos a uma submissão completa; bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas e orgulhávamo-nos de sua excelência, seu conhecimento, sua justiça. No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso. Mas não se pode negar que nossa posição em relação a eles era notável, uma posição que bem pode ter tido suas inconveniências para os interessados. Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e respeitá-los. A psicanálise deu nome de ‘ambivalência’ a essa facilidade para atitudes contraditórias e não tem dificuldade em indicar a fonte de sentimentos ambivalentes desse tipo.

No que diz respeito à gênese psicanalítica da ambivalência da qual fala Freud, ele explica que as relações de uma criança com as pessoas já foram firmadas nos primeiros anos de vida, sendo desenvolvidas ou transformadas para este ou aquele lado, todavia nunca dissolvidas. Assim, as primeiras pessoas com as quais possuímos contato, pais, irmãos, irmãs, responsáveis, etc., são aquelas que definirão nossa forma de nos relacionarmos com os outros seres humanos. Todas as outras relação seriam, portanto, figuras substitutas destas primeiras.

A figura paterna cumpre um papel fundamental neste processo, ainda que ela não seja exercida propriamente por um pai biológico (o pode ser, ademais, por tio, uma avó, ou mesmo uma pessoa sem nenhuma relação consanguínea).

Entretanto, a admiração incontida pela imagem do pai, natural em todo “filhote de homem”, passa por severas transformações na segunda metade da infância, quando a criança percebe que o pai não é nem o mais forte, nem o mais sábio, nem o mais perfeito dos seres, como antes havia concebido. Assim, surge a “ambivalência” por meio do qual a criança inevitavelmente transitará entre admiração e repulsa, determinando desligamento com o pai.

É precisamente neste momento que surge o professor na vida de uma criança. Ela ingressa no ensino primário e encontra no mestre uma figura substituta ao pai. Fatalmente, ela carrega também a mesma ambivalência que havia cultivado anteriormente.

Desta forma, qualquer pessoa pode facilmente concordar com o fato de que, por vezes, parece-nos que os professores são os mais poderosos e inteligentes dentre os seres. Por eles guardamos incontida admiração e almejamos alcançar tamanho grau de instrução e magnitude. Por outras, são pessoas detestáveis que precisam ser contestadas e mesmo derrubadas.

O que não se pode negar, contudo, é o fato de que sua influência em nossas vidas é gigantesca e decisiva. É muito comum ouvir relatos de pessoas que escolheram suas profissões a partir da admiração que nutriam por seus mestres. Uma menina que decide ser médica pela entusiasmo causado pelas aulas de sua professora de biologia. Um rapaz que decide virar advogado pelo impacto desafiador surtido por seus professores da área de humanidades. Um jovem encantado com o professor de matemática, que se tornou um engenheiro. Ou mesmo um outro que, movido pelo ímpeto de uma identificação mais radical ou aversão absoluta, tornou-se ele mesmo professor – dentre estes, há quem diga que se tornam professores por nunca terem superado o trauma de deixar a escola.

Entre amor e ódio, esta relação humana primordial vem a ser uma das mais dignas de exaltação e celebração. Seja em maior ou menor grau, com mais ou menos intensidade, de forma explícita ou implícita, consciente ou inconsciente, todos devemos algo aos mestres, seja pelo bem, seja pelo mal. Com isto, resta-nos prestar as mais sinceras homenagens nesta data: aos mestres, com carinho… mas nem tanto.