Aos 108 anos do nascimento de Hannah Arendt

por Luiz Fernando Fontes Teixeira

Dispendi a última noite debruçado sobre a leitura de um clássico artigo de Hannah Arendt, publicado em 1957 sob o título A crise na educação. Curiosamente, foi-me chamado à atenção para o fato de que, caso ainda estivesse viva, Arendt completaria 108 anos de idade neste 14 de outubro. Feliz coincidência!

Sempre nutri um carinho especial pela obra de Hannah Arendt. Muito disto, deu-se em consequência do tempo que devotei ao estudo do pensamento de Martin Heidegger, um de seus grandes mestres. Todavia, seu elo com o “bruxo de Messkirch” ultrapassou as fronteiras da mera transmissão de ensino. Foram parceiros, amigos, amantes.

Formidável que, justo nesta data comemorativa, dedicava-me ao escrito que trata dessa complicada relação – a educacional. É certo que, neste artigo, Arendt está preocupada com um fenômeno particular dos eventos de abertura da segunda metade do século XX. Ainda assim, o que subjaz às intepretações dos sistemas de ensino daquela época é uma profunda meditação em torno à essência da educação.

Aquilo que Hannah Arendt nomeia como a essência da educação advém da noção de natalidade, isto é, o fato de que os seres humanos nascem em um mundo – mais ainda, nascem prematuros e despreparados. Ao ato de nascer, competem múltiplas consequências, como a de se tornar um ser social e abrir, para si e a partir de si, uma visão de mundo. É neste processo de introdução do sujeito nos hábitos e costumes do convívio social que a educação cumpre sua essência.

Para Arendt, a educação se ocupa fundamentalmente da transitoriedade das crianças. Ela deve lidar com o fato de que os pequenos ainda não estão prontos para ingressarem no mundo dos adultos – dele devem ser protegidos e para ele preparados. Somente tendo isto em vista é possível salvaguardar a mais forte feição da infância, qual seja: o devir.

A consumação do processo educativo deve se dar, deste modo, pela a assunção de uma dupla responsabilidade dos adultos: pela vida e desenvolvimento das crianças e pela continuidade do mundo.

A escola é o primeiro contato das crianças com o mundo. Ela ainda não é o mundo nu e cru, propriamente dito, mas retira a criança do seio protetor da família. Ela está no espaço do “entre”. Ali a criança desenvolverá livremente suas principais características e qualidades. Ali se dará a abertura para sua singularidade. Ali, precisamente ali, ela se tornará algo completamente distinto de tudo o que havia até então. Ao menos nisto reside nossa esperança em relação ao curso das coisas no mundo!

Contudo, este procedimento não passa incólume aos mais diversos traumas e não está isento de complexos desafios. Sua tarefa nem sempre se completa e, muito provavelmente, nunca possa efetivamente se completar. Por este motivo, Arendt aponta para as instabilidades visíveis em uma crise inerente.

Sua análise visa uma crise específica, aquela pela qual passavam os Estados Unidos da América, nação que a acolheu em 1941, após ter sido forçada a fugir da Europa por conta do regime nazista. É bem sabido que os Estados Unidos acolheram milhares de imigrantes judeus refugiados, como Arendt. Ademais, recebiam (e ainda recebem) pessoas de todas as partes do mundo, com um fluxo considerável.

Trata-se de um país basicamente composto pelo encontro das mais diversas culturas. Descendentes dos colonizadores britânicos, dos trabalhadores irlandeses e escoceses que fugiam dos conflitos com o Reino Unido, africanos que haviam sido trazidos como escravos, latinos, ibéricos, orientais, dentre centenas de outras etnias que compuseram a nação.

A dificuldade que formatou a crise pertinente ao período no qual Arendt apresentou seu artigo, ou seja, nos idos de 1950, está diretamente relacionada com tal miscigenação. A escola educava uma terra de imigrantes, muitos dos quais não possuíam o inglês como língua materna. Era necessário escolarizá-los e, acima de tudo, americanizá-los, para que pudessem conviver em consonância com o american way of life.

É notadamente aí que se mostra um perigo para o qual atenta Hannah Arendt. Perigo este que assolava a crise norte-americana da educação e que acossa ainda muitos países, sobretudo os latino-americanos, principalmente o Brasil. Este perigo se concentra nas tentativas de intercalar educação e política.

Ela frisa que a educação não possui nenhum papel a ser desempenhado na política, pelo simples fato de que a política lida já sempre com pessoas educadas, mesmo que isto não signifique especificamente uma “educação formal”. Neste sentido, a educação para a política soaria como algo extremamente perverso, doutrinário e manipulador. Toda educação como ato político consistiria, portanto, em uma tentativa de coerção e violência pela palavra.

Há uma idolatria quase totêmica entre os educadores brasileiros pelo trabalho desenvolvido por Paulo Freire, para quem “educar é um ato político”. Não convém entrar no mérito de uma discussão com a obra de Paulo Freire aqui e agora, embora seja de todo aprazível e necessário evidenciar os descompassos no pensamento deste autor. Todavia, vale ressaltar as meditações de Arendt a respeito do tópico “política versus educação”, para que possamos, talvez futuramente, delinear os embargos da politização da educação.

Arendt argumenta que mesmo que haja uma boa intenção, como a de educar as crianças para a construção de um amanhã politicamente utópico, o que ocorre é na verdade uma privação inevitável do lugar que esta criança ocupará no mundo. Cria-se uma ilusão de que um “novo mundo” está na iminência de ser construído por meio da educação.

O que ocorre aí, na verdade, é uma projeção inconsequente dos adultos nas crianças. Como ainda não conseguiram construir este novo mundo, imputam às novas gerações a imagem que possuem de um suposto mundo melhor. E todos sabem o que ocorre quando pais frustrados tentam fazer com que seus filhos sejam aquilo que eles mesmos não foram – há uma grande possibilidade de que esta criança entre em crise com seu “eu idealizado” e perca de vista sua singularidade. Consequentemente, se havia esperanças de mudar alguma coisa por meio das características únicas daquela criança, esta esperança morre com a “forçação de barra” dos adultos em cima delas.

O que deveria se tornar uma transmissão respeitosa, uma conservação dos saberes antigos face ao mundo que a criança terá de encarar, torna-se uma politização alienante e invasiva do processo educativo. Arendt ilustra como isto foi sobremaneira sintomático em uma América do Norte que não havia conseguido dizimar a pobreza e a opressão, propelindo nas crianças o futuro de uma ilusão.

Arendt aponta para o fracasso da absorção das “mais modernas teorias pedagógicas” nos Estados Unidos, onde, naquela época, os níveis de educação estavam muito aquém daqueles da Europa. Igualmente, seria possível apontar para o fracasso da educação brasileira em sua empolgação com certas propostas pedagógicas, tais quais a pedagogia freireana, a moda construtivista que invadiu o país na década de 1970 e permanece forte até hoje, além de práticas ainda mais decadentes, como a praga dos projetos político pedagógicos e dos parâmetros curriculares nacionais, que mantém nossa educação aquém da Europa, dos Estados Unidos, do Japão, de Israel, do Uruguai, do Cazaquistão e de dezenas de outros países.

Hannah Arendt faleceu aos 4 de dezembro de 1975. Aproximamo-nos do quadragésimo aniversário de sua morte. Muitas de suas reflexões, apresentadas tantos anos atrás, são ainda hoje extremamente pertinentes. Muitas de suas propostas são mais do que dignas de serem pensadas e repensadas. Caso alguém argumente que suas perspectivas fazem parte de um passado distante, que deve ser superado em prol do novo, minha sugestão de resposta é: quiçá, justamente por estarmos presos em um sistema educativo tão retrógrado, aprisionados em um passado tão obscuro, esteja mais do que na hora de retomar o fio da meada e encontrar em Hannah Arendt o momento no qual nos perdemos no caminho.