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28 de maio de 2015

Precisamos falar sobre “trigger warning”

O chamado trigger warning tem provocado bastante debate na educação superior dos Estados Unidos. Não é surpresa, a ideia é polêmica e sujeita a controvérsias. Para alguns críticos, trata-se de uma nova roupagem do “politicamente correto” nos campi. Para os defensores, é somente uma atualização das práticas pedagógicas ao tempo atual. Embora o trigger warning seja um fenômeno típico dos EUA e do contexto anglo-saxão (como a ferramenta que permite verificar buscas feitas no Google deixa claro – aqui), de certo modo, surge também no Brasil.

Mas, afinal, o que é trigger warning? A expressão é de difícil tradução. Em inglês, “trigger” significa, com valor de substantivo, o “gatilho” de uma arma, e como verbo a causa de algo, o que desencadeia alguma coisa. Por sua vez, “warning” remete às palavras “aviso”, “alarme”, “advertência” e “precaução”. Uma boa definição descritiva para o termo é dada por Jeet Heer (num artigo para a revista New Republic): “rótulos de advertência nos currículos e planos de curso com alerta aos estudantes de que o material pode evocar memórias dolorosas”.

A ideia deriva de práticas adotadas em fóruns feministas na internet, sites e blogs, tendo obtido maior alcance por meio da mídia social. A revista Slate declarou que 2013 foi o “ano do trigger warning”. Então, falava-se principalmente sobre o tema em relação aos conteúdos da internet e na TV, mas em pouco tempo chegou à educação. De maneira irônica, Conor Friedersdorf (aqui) indaga sobre o que as faculdades podem aprender com o canal HBO sobre o assunto.

O trigger warning é demandado por estudantes pertencentes a grupos vulneráveis ou que sofreram algum tipo de violência (abuso sexual, racismo, etc.), bem como pelos que acolhem a ideia de inserir alertas no material didático (e currículos) sobre o risco da exposição a algum conteúdo. Defende-se que a universidade deve ser um “ambiente seguro”.

Dois casos são bastante emblemáticos. No primeiro, em fevereiro do ano passado, alguns estudantes do Wellesley College protestaram contra a estátua realista de um homem vestindo apenas roupa de baixo. Eles iniciaram uma petição no Charge.org para que a escultura (que fazia parte de uma exposição) fosse removida dos arredores do museu da faculdade e colocada no prédio da instituição. Em outro caso, ocorrido em abril deste ano na Columbia University, quatro estudantes defenderam o trigger warning, ao relatar o caso de uma estudante que, ao ler para um curso partes da Metamorfose de Ovídio, alegou sentir-se desconfortável. A estudante tinha sido vítima de abuso sexual, e a obra em questão faz descrições deste ato. A aluna externou seu mal estar ao professor, que desconsiderou a reclamação. O artigo, publicado no jornal estudantil da universidade, significativamente intitula-se “Our identities matter in Core classrooms” (Nossas identidades importam no currículo Básico das turmas).

É evidente que algumas situações têm um viés cômico que não escapa aos críticos da proposta. Assim, ela é vista como um preocupante sinal de infantilização estudantil – transformar o ambiente universitário e as salas de aula numa espécie de bolha pode ser negativo para os próprios alunos, já que “a vida não possui trigger warnings”. Ainda numa perspectiva crítica, nota-se que a adoção de políticas (por exemplo, guias de conduta, como o cogitado pelo Oberlin College) relacionadas com assunto pode prejudicar a liberdade dos estudos acadêmicos, a exposição de ideias e ser um instrumento para a intimidação de professores.

O trigger warning é demandado por estudantes de grupos vulneráveis

Outra crítica é que submeter o estudante a um choque ou desconforto pode estar nos planos e intenções da ação pedagógica. A experiência universitária implica certa dose de inquietação e atenção a problemas muitas vezes brutais. O sociólogo Todd Gitlin oferece (aqui) um exemplo interessante, narrando quando seu professor fez a classe assistir ao filme nazista O triunfo da vontade, seguido pelo documentário sobre os campos de concentração Noite e neblina.

Uma compilação de aspectos questionáveis ou possivelmente negativos do trigger warning é feita num artigo assinado por quatro professores (aqui). O texto é bastante razoável, e não desmerece, em si, a preocupação, procurando oferecer algumas alternativas a ela, como a existência de recursos de aconselhamento e grupos de apoio para estudantes que necessitem.

No contexto dos EUA (um país que possui muito veteranos de guerras), a discussão do tema associa-se ao TEPT – Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Para Ashley Mackenzie (aqui), a crença popular na validade deste distúrbio e a tendência a patologizar os problemas sociais explicam o surgimento do trigger warning.

A minha interpretação (sem excluir outras causas) é que a erosão da crença na política e a perda de confiança no universalismo como motor da mudança social fortalecem as iniciativas relacionadas a diferentes “identidades”, fragmentadas e diversas. Esta crise da política é vivida em todos os lugares, o que leva a crer que o debate atingirá muitos países. Há, de qualquer modo, pontos também válidos e razoáveis relacionados com a defesa do trigger warning, no meu entender. Pretendo abordá-los no próximo artigo, assim como a relação mais direta já existente entre o Brasil e o tema. No entanto, se o leitor refletir sobre o que leu e acionar sua memória, talvez lembre um fato.

Caso tenha pensado em Monteiro Lobato, acertou.

Alertas em sala de aula

Pelo que foi discutido na coluna passada, e para não parecer pedante, adoto a tradução “alerta de conteúdo” para trigger warning. E, de fato, nos EUA, alguns preferem a expressão content warning, tendo em vista que trigger possui uma origem psicológica que pode ser enganosa em contexto não clínico.

No fim do texto anterior, falei de Monteiro Lobato e lembro agora que, em 2012, foi feita uma recomendação para que o livro Caçadas de Pedrinho fosse complementado por uma espécie de alerta, para que ele continuasse no Programa Nacional Biblioteca na Escola. Este aviso tomaria a forma de contextualização feita pelos professores que fossem utilizar a obra, bem como a inserção de nota explicativa em futuras edições.

O caso remonta a 2010, quando o Conselho Nacional de Educação (CNE) determinou que o livro não fosse mais distribuído em escolas brasileiras, em função de conteúdo racista. A inclusão de nota na edição não prosperou, sendo que no fim de 2014 houve notícia sobre o não acolhimento da solicitação. Porém, tudo indica que o caso terá continuidade e novos desdobramentos.

Não possuo conhecimento suficiente para julgar o mérito da avaliação sobre o suposto racismo de Lobato, porém creio que o governo tem o direito e o dever de não comprar e distribuir livros que possam prejudicar a formação de crianças, principalmente, provocando sofrimentos desnecessários a um grupo social qualquer. Isto, em absoluto, representa censura, pois não se trata de retirar os livros de livrarias, bibliotecas ou proibir sua leitura.

De qualquer modo, o que importa notar é que no Brasil também há esse tipo de preocupação, similar ao trigger warning dos Estados Unidos. Nesse sentido, é interessante reunir alguns argumentos dos que defendem essa prática, especificamente no caso do ensino superior. Num artigo, publicado em maio passado na New Republic (aqui), Aaron R. Hanlon desenvolve uma série de pontos bastante ponderados. Em primeiro lugar, ele nota que, ainda que os professores estejam confortáveis com os assuntos que ensinam, estando cientes dos desafios emocionais e intelectuais que estes possuem, é necessário considerar que os estudantes são pessoas com histórias e preocupações reais. É claro que essa potencial diversidade de histórias de vida é uma dificuldade para os alertas de conteúdo, porém, o terreno do bom senso pode ser um conselheiro válido sobre o assunto.

Hanlon, que é professor de Literatura, defende que o alerta não significa um ato de censura ou um fechamento de sentido para as interpretações, tendo em vista que ele pode ser o ponto inicial de uma discussão que desafie os pontos de vistas dos próprios estudantes. Naturalmente, isso é mais viável com pessoas com mais maturidade, como os universitários.

Um aspecto adicional observado por ele é que levar a sério as preocupações dos estudantes não significa mimá-los, mas ter um maior cuidado com o modo como eles respondem a materiais desafiadores, o que é simplesmente um princípio adequado para uma pedagogia responsável.

Outro professor de uma disciplina na qual os alertas parecem fazer mais sentido (História), Angus Johnston, escreveu um ensaio no site Inside Higher Ed (aqui) em que explica como pretende utilizar o alerta de conteúdo em seu curso (dá um exemplo prático de redação do mesmo), bem como por quê. Sua justificativa relaciona-se à crença que os alertas têm um alcance que vai além dos estudantes com algum tipo de trauma. Uma vez que uma sala de aula é um espaço interativo, o professor tem a obrigação de incentivar a participação, afastando elementos que a prejudiquem. Conteúdos inesperados e possivelmente constrangedores, por isso, podem merecer alertas e contextualizações específicas. No limite, Johnston defende que um aluno possa deixar de ver algo ou acompanhar determinada discussão, ausentando-se da classe. Ele também oferece oportunidade do aluno discutir desconfortos pessoais e críticas ao conteúdo, na própria aula, ou extraclasse.

Em suma, trata-se de uma posição de bastante respeito ao estudante, e preocupação com essa situação especial de interação representada por uma aula.

Voltando ao Brasil, num caso ocorrido em abril deste ano, parece ter faltado essa sensibilidade. Conforme noticiado na imprensa (aqui), um professor inglês que ministra uma disciplina chamada English for Science (Inglês para a Ciência), no Instituto de Biologia da USP, utilizou um texto, para dizer o mínimo, polêmico a propósito da relação entre raças e inteligência. A aula foi “ocupada” por estudantes negros que acusaram o professor de racismo. Ele negou tal ímpeto, notando que seu desejo era justamente que o texto fosse comentado e discutido, em inglês, para a prática dos alunos da disciplina.

O ponto que merece atenção aqui é que, provavelmente, um alerta de conteúdo numa situação como essa poderia ter evitado o confronto e o possível mal entendido, assim como evidenciar, desde o início, o respeito do docente a grupos vulneráveis.

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